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terça-feira, 17 de março de 2009



Epistemologia no ensino-aprendizagem da Arte: Uma questão de reflexão


Silvia Sell Duarte Pillotto

Introdução

Este artigo propõe algumas reflexões acerca das questões que permeiam a epistemologia, relacionando-a ao ensino e à aprendizagem da arte no contexto da escola.

Para tanto, faz-se necessário pensar no real significado dos termos arte, ensino, aprendizagem, socialização, epistemologia e democratização, para sinalizarmos algumas considerações, como:

É possível ensinar arte?

Que aspectos estamos abordando nesse ensino: o da arte num contexto artístico e universal ou, num sentido maisespecífico, o do ambiente escolar?

A arte produzida pelos artistas e a função da arte na escola são objetos de estudos diferenciados, embora estejam intimamente entrelaçados.

Neste momento, nosso estudo balizador vai centrar-se no contexto educacional, porém apropriando-se de alguns elementos tratados na arte de um modo geral, como imaginação, criação, poética, leitura e fruição - elementos básicos para a materialização da arte e o exercício artístico na escola formal.

Quando nos apropriamos de concepções filosóficas e metodológicas, estamos também definindo e traduzindo a nossa forma de ver, sentir e estar no mundo.

O que significa então, para nós, o ato de ensinar e aprender? É uma ação impositiva e autoritária ou dialógica e democrática?Nesse sentido, podemos transcender a prática de ensinar e aprender para o exercício da democracia e da socialização de conhecimentos, sejam estes de ordem técnica, de conteúdo, de conceitos e/ou da arte. Há que se questionar sobre a possibilidade de o ensino-aprendizagem da arte no contexto escolar ser um veículo de democracia e liberdade aos meninos e meninas com os quais convivemos. Direta ou indiretamente somos responsáveis pelo modo como eles aprendem a sentir e estar no mundo, pois somos também nós, no contexto da escola, como profissionais da educação, que os ensinamos a ver ou não ver, ser ou não ser, estar ou passar pelo mundo.

Nossa intenção, aqui, é contribuir com essas reflexões, para que cada vez mais estejamos conscientes e coerentes com nosso papel de profissionais na área de atuação pela qual optamos: ensinar e aprender arte.

Desenvolvendo o pensamento

Ao buscar o significado da palavra epistemologia, encontramos: "Estudo do grau de certeza do conhecimento científico em seus diversos ramos, especialmente para apreciar seu valor para o espírito humano "(BUENO, 1996).

Gostaríamos aqui de problematizar algumas questões, como:

O conhecimento apropriado de um objeto de estudo, de um objeto quotidiano ou mesmo de um objeto artístico é sempre variável de pessoa para pessoa e depende também do tempo-espaço histórico e cultural, de interesses e desafios. Portanto, a relatividade é uma constante no exercício de aprender e ensinar. Aprendemos sobre aquilo que nos fala mais intimamente, e ensinamos a partir dos fragmentos que pensamos ser mais importantes naquele momento para aquelas pessoas.

A apreciação na epistemologia invoca os valores humanos; isso significa que nessa trama envolvem-se elementos como conceito, opinião e análise. Então, se buscarmos os significados para além da etimologia, podemos pensar nesses conceitos como algo a ser ressignificado.

Mas será que falar em epistemologia da arte é adequado? Ou a arte, por si só, já é suficiente como expressão, sem necessitar do conhecimento?A arte pode ser definida como: "Conjunto de preceitos para a perfeita execução de qualquer coisa. Artifício, ofício, profissão; indústria; astúcia; habilidade; travessura; magia; feitiçaria; [...] complexo de regras e processos para a produção de um efeito estético determinado" (BUENO, 1986).

Os conceitos de arte e de ensino-aprendizagem da arte têm-se transformado ao longo do processo histórico e, nesse percurso, ambos passaram e passam por momentos, muitas vezes, semelhantes.

Nos períodos que antecederam e sucederam a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais, os paradigmas conceituais da arte e da educação mudaram consideravelmente.

Hoje, entendemos por "perfeita execução de qualquer coisa" o objeto artístico que lida com a criação, a pesquisa, os conceitos, o real e o imaginário. Não buscamos pura e simplesmente a perfeição na representação mimética, mas na presentificação, na reelaboração e na autonomia da arte.

Se ontem preocupava-se apenas com a apreciação, o presente envolve-se com o estranhamento, com a co-autoria das pessoas na interação através da leitura.

Sandra Ramalho, no Encontro Técnico da Rede Arte na Escola, em Florianópolis, nos disse que "tudo que é perceptível é passível de leitura". Assim, tudo o que é lido precisa de alguém para saboreá-lo, compreendê-lo. No jogo entre a arte, o seu criador e aquele que a absorve estão as relações que desse jogo provém, a fruição.

Esses elementos são também tratados no contexto escolar. Vale como experiência humana fazer arte, pensar a arte e transformar-se pela arte.

Raul Antelo, no mesmo Encontro, nos falou que "a experiência acontece também pelo erro e que este é mais construtivo que a verdade-constatação". Ou seja, a verdade da aparência primeira, da idéia explícita. Mas essa busca, essa percepção do que se vê é uma ação espontânea? A questão persiste: arte se ensina e se aprende?Elliot Eisner diz que "a arte nos faz empregar nossas mais sutis formas de percepção e contribui para o desenvolvimento de algumas de nossas mais complexas habilidades cognitivas" (apud BARBOSA, 1997, p. 90). Eisner aponta especialmente para a importância da cognição, dessa habilidade do pensamento tão pouco compreendida no ensino modernista e bastante difundida na educação da arte, no contexto contemporâneo e para além desse, na pós-modernidade.

Saber desvelar o que na arte está contido, experimentando o ato de ler, decodificar a gramática visual, corporal e sonora, transpô-la para o mundo real e imagético é acima de tudo compreender os signos do mundo presente. É também aprender arte e na arte, apropriando-se tanto dos aspectos cognitivos como dos sensíveis, pois "as obras de arte falam o inefável, cultivam a sensibilidade, para que o sutil possa ser visto, o secreto desvelado. Em resumo, a arte nos ajuda a conhecer o que não podemos articular." São palavras de Eisner (apud BARBOSA, 1997, p. 90).

A escola pode estar tratando do espírito investigativo, mental, introspectivo e emocional, elementos que dão sustentação à arte. Entretanto, poderíamos ainda nos perguntar: De que forma podemos desenvolver tais elementos relacionando-os ao ato de ensinar e aprender?Eisner, novamente, nos aponta algumas pistas, quando elenca quatro grandes eixos para o ensino da arte: a produção, a crítica, a história e a estética da arte.

A produção de arte ajuda a criança a pensar inteligentemente sobre a criação de imagens visuais. Ela pode criar imagens que tenham força expressiva, coerência, discernimento e inventividade. A crítica de arte desenvolve sua habilidade para ver, ao invés de simplesmente olhar, as qualidades que constituem o mundo visual - um mundo que inclui, e excede, trabalhos formais de arte. A história da arte ajuda as crianças a entender alguma coisa do tempo e lugar, pelos quais todos os trabalhos artísticos se situam: nenhuma forma de arte existe em um vácuo descontextualizado. A estética é o mais novo componente curricular de Arte-Educação - compõe as bases teóricas que permitem o julgamento da qualidade daquilo que se vê. Argumentamos a partir de nossos julgamentos de valor, e gostamos de fazê-lo. Entender a variedade de critérios que podem ser aplicados às obras de arte e refletir sobre os significados do conceito arte é o objetivo principal da estética (apud BARBOSA, 1998, p. 83).

Vale aqui lembrar que esses elementos, apesar de suas especificidades, caminham paralelamente, envolvidos num tempo histórico-cultural. Isto é, cada conceito discutido, cada produção realizada, cada obra de arte pensada e cada momento histórico abordado no contexto da escola deverão fazer parte do conjunto de ações quotidianas e frente a um pensamento contemporâneo. Pensar a partir do nosso tempo sobre outros tempos é fundamental no exercício temporal, mental, relacional e no diálogo silencioso e expressivo nosso com outros tempos a partir deste tempo, que é onde vivemos e percebemos todas as coisas.

Segundo Robert William Ott, "a arte pode assumir diversos significados em suas várias dimensões, mas como conhecimento proporciona meios para a compreensão do pensamento e das expressões de uma cultura" (apud BARBOSA, 1998, p. 111).

Ott é enfático quando lança o conhecimento em arte como fundamento básico para a compreensão cultural. Saber das transformações artísticas e culturais, dos elementos visuais, sonoros e corporais que marcam e registram a força de uma época, de pensamentos e ações é valioso em nosso processo de aprendizagem e em nossa experiência humana.

Da mesma forma, poderíamos citar o quanto o ato expressivo é vital para a criança, o jovem e o adulto, seja por meio corporal, plástico ou sonoro. Contudo, poucos são os espaços e as oportunidades. Nesse caso, a escola pode contribuir para que haja expressão, criação e reflexão.

Portanto, entendemos que aprender arte e sobre arte é um direito de toda criança, todo jovem e adulto, pois o homem, como ser pensante, necessita de criar outras verdades, outros mundos, reais e imagéticos, que só a arte na sua essência pode propiciar.

Últimas considerações

Ao professor de arte cabe o papel de desafiar e não afirmar com verdades absolutas. Se antes dizíamos: "isto é uma obra de arte", hoje, o momento histórico nos leva a perguntar: "pode isto ser uma obra de arte? Por quê?"Raul Antelo, no Encontro Técnico da Rede Arte na Escola, em Florianópolis, ao afirmar que "é importante fazer com que o silêncio fale e o erro seja verdade" rompe com qualquer sinalização finita e absoluta.

Mas, quando abordamos essas questões relacionadas ao contexto educacional, nos vem sempre a mesma indagação: Se arte significa magia, feitiçaria, efeito estético, como ensiná-la?Se ensinar origina-se da idéia de "instruir; doutrinar; educar; estimular e dirigir a transformação de (o homem); castigar; adestrar" (BUENO, 1986), diríamos que não há como ensiná-la. Se, por outro lado, projetarmos o conceito de educar em "estimular; desenvolver e orientar as aptidões do indivíduo, de acordo com os ideais de uma sociedade determinada; aperfeiçoar e desenvolver as faculdades físicas; intelectuais e morais de; ensinar; instruir; domesticar; adestrar" (BUENO, 1986), diríamos que os menos afortunados - que não tiveram a sorte de nascer com aptidões para as habilidades artísticas - estão em desvantagem comparados aos privilegiados acolhidos pelo dom. Estes seriam os que comungam dos padrões estéticos determinados e impostos pela sociedade, em nosso caso, mais especificamente a ocidental.

Ora, no contexto escolar, podemos identificar os privilegiados como aqueles que estão dentro das normas e regras de um padrão de beleza do professor, do diretor, da comunidade e do senso comum. Os que se afastam ou que se diferenciam na autonomia são aqueles que não possuem habilidades, não sabem fazer arte, não conhecem os conceitos universais...

Na escola, quando meninos e meninas dizem não saber fazer, estão se referindo ao fazer estereotipado e não ao fazer que envolve sentir e perceber o mundo e todos os elementos que o compõem.

E somos nós, educadores, que podemos ou não formar meninos e meninas que reproduzem estereótipos ou meninos e meninas que experienciam a leitura, a poética e a fruição.

Os dicionários definem o educador como instrutor, professor, mestre, pedagogo. E o educando como colegial, aluno, discípulo.

Optamos por compreender o educador como aquele que media conhecimentos, de forma dialógica e democrática, e não aquele que transmite conhecimentos por imposição e autoritarismo.

Como educando, entendemos aquele que se apropria dos saberes e o traduz na transformação e materialização de algo que se interiorizou e transbordou para o outro e para o mundo.

Aprendizado quer dizer a ação de aprender; tempo durante o qual se aprende.

Cada menino e menina tem o seu tempo próprio e único, que deve ser respeitado e compreendido como ação, seja no mais profundo silêncio ou no movimento mais estranho que nos possa parecer.

Aprender pode significar uma ação que parte da mediação. Isso sinaliza que o aprendizado não é um ato solitário, isolado do aluno. É o professor que media seus conhecimentos; são também os colegas, o livro, a imagem, a música, a dança, o teatro, o cinema, as mídias...

E, ao mesmo tempo em que é um ato coletivo, é antagônico, porque também é individual.

Individual porque vemos sob o nosso ponto de vista, como percebemos e sentimos; somos do mundo na sua universalidade, mas únicos na forma como nos inserimos nele, como respondemos, questionamos e pensamos sobre, para e com ele, incluindo tudo e todos que dele fazem parte.

Então, se buscamos as concepções filosóficas que balizam nossas ações, podemos dizer que, ao nos apropriarmos de palavras como arte, ensino e aprendizagem, estamos sempre assumindo determinados papéis. Somos instrutores ou mediadores? Autoritários ou democráticos? Somos os donos de verdades absolutas ou questionamos, investigamos, estudamos, aprendemos? Afinal, o que queremos de verdade?Refletindo sobre a possibilidade da democratização do ensino e buscando novamente a sua significação, deparamo-nos com o seguinte: "democratizar é tornar democrata ou democrático; dar feição democrática a; popularizar" (BUENO, 1986).

Então, seria interessante pensar que, talvez, o único espaço que a maioria dos meninos e meninas possam ter para fazer arte, ler apropriando-se do objeto artístico, pensar e fruir arte, seja a escola.

Se, diante desse fato, a escola e a sociedade que a constrói em cada momento histórico entendem a arte como componente curricular, com conteúdos, metodologias e filosofia própria, como podemos afirmar com tanta certeza que não aprendemos a fazer, pensar, ler e fruir arte?Mesmo o artista, que materializa o seu modo de ver e perceber as coisas, as pessoas e o mundo, está sempre em processo de aprendizagem, com a vida, com as pessoas, com os objetos, com a natureza, com os conflitos, com os erros, com a história... E nós, professores, meninos e meninas sempre temos algo a aprender com e sobre a arte, sobre o nosso tempo, os outros tempos, a vida...

Assim, em cada momento existe alguém que ensina e alguém que aprende, que se apropria, interioriza, materializa e socializa. Por isso, compreendemos que a socialização da arte pode ser uma forma de democracia.Voltando à busca do significado das palavras, socialização é o "ato de pôr em sociedade; extensão de vantagens particulares à sociedade interna; desenvolvimento do sentimento coletivo e do espírito de cooperação nos indivíduos associados; processo de integração mais intensa dos indivíduos no grupo " (BUENO, 1986).

Não desejamos que o ensino-aprendizagem da arte na escola seja uma ação rígida e de transmissão, apenas. Saber nomes de artistas, datas importantes, estilos e acontecimentos históricos, desvinculados do contexto, é menosprezar a capacidade dos meninos e meninas de relacionar fatos, objetos, ações, histórias e significados com aquilo que pensam e compreendem. Uma postura que articula conhecimento e prazer de aprender, de ler, de fazer, de fruir, pode nos levar a resultados mais construtivos, pois somente o que o sensível percebe realmente faz sentido, o restante é apenas decodificado pela memória, e a tendência é desaparecer com o tempo. Nós acreditamos numa educação em arte para todo o tempo e para além do tempo.

Estar envolvido com todos esses elementos, ao mesmo tempo em que nos tornamos co-autores do meio histórico e cultural, pode nos indicar um encontro significativo entre o prazer da liberdade e a angústia de compreender que o saber é infinito, pois nunca sabemos o suficiente de todas as coisas...

A intenção deste estudo foi dialogar sobre a reflexão epistemológica da arte, discutindo se é possível ensinar e aprender arte. Não somos nós que vamos fechar finitamente essa questão, pois, como já dissemos, as respostas estarão sempre comprometidas com o que somos e com o que pensamos.

Importa-nos mais, neste momento, ressaltar a contribuição do ensino da arte no contexto da escola, para que meninos e meninas desenvolvam suas capacidades emocional, sensível, perceptiva e cognitiva, visando sempre levá-los a ser e estar cada vez mais humanos.


Referências bibliográficasBARBOSA, Ana Mãe (org.); EISNER, A.; OTT, R. W. Arte-educação; leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, 1998.BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. 11.ed. Rio de Janeiro: FAE, 1986.MARTINS, Mirian C (org.) Didática do ensino da arte. A língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998.McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. Tradução de Bebel O. Schaefer. São Paulo: Cortez, 1997.SILVA, Tomaz Tadeu. (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995.ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Tradução de Ernani F. Rosa. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

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